terça-feira, 17 de junho de 2008

FOME DE VIVER

Marcos T. R. Almeida


A beleza é verdade, a verdade é beleza, isto é tudo quanto conheceis na Terra e tudo quanto necessitais conhecer. - John Keats


Quanta beleza e poesia pode estar por detrás de uma obra cinematográfica, ainda que de terror? Sim, um bom filme de terror nem sempre é aquele onde o diabo aparece pessoalmente. E irei mais longe ainda afirmando que os bons filmes de vampiros nem sempre são aqueles onde os caninos afiados são exibidos explicitamente, se bem que cada gênero e estilo possuem sua grandeza própria independente de crítica.
Um exemplo da minha afirmação é o filme Drácula, estrelando como ator principal Frank Langella. Lançado no ano de 1979, é uma adaptação do romance de Bram Stoker, muito bem feita, e em nenhum momento Drácula mostra seus afiados caninos, mas em compensação é um excelente filme de terror com todas as situações que culminam num monstruoso desfecho de amor, crime, sedução e morte, envolto em uma atmosfera de horror.
Drácula aqui se apresenta sem nenhum traço de crueldade, porém sua postura e suas palavras é que vão enchendo o filme de mistério, mas no fundo da alma ele é o vampiro demônio sedutor e cruel...
Fome de Viver (The Hunger, 1983) seria então outro filme de terror onde existe um vampirismo explícito, mas em nenhum momento aparecem presas aguçadas para dilacerar o pescoço de uma bela mulher, e nitidamente vê-se nas cenas, fortes impressões de marcas de sangue e tudo impregnado de um inconfundível universo gótico. Diria que é o cult de todos os góticos apreciadores do gênero terror-vampírico, um clássico de grande relevância.
Logo na primeira cena, na abertura do filme, a banda Bauhaus está tocando num salão gótico, a faixa por eles gravada em homenagem e memória ao ator Bela Lugosi. É exatamente a música Bela Lugosi is Dead. Em destaque está a exuberante beleza de Miriam (Catherine Deneuve), que é uma vampira vênus que contracena com John (David Bowie), o grande astro do rock and roll.
O casal habita um luxuoso apartamento ricamente decorado com peças de arte entre quadros, esculturas e cortinas, junto à um grande piano onde tocam-se obras de Sebastian Bach, Delibes e Schubert, e o filme todo se dá ao som das obras excepcionais destes célebres músicos, dando à cada cena um toque mais profundo de mistério, erotismo, terror e poesia.
John envelhece aceleradamente, pois ele foi contaminado pela bela Miriam, que sugou sua vida, em especial sua juventude. Ela, a cada nova vítima em que suga-lhe o sangue, rejuvenesce e fica mais bela, ao passo que a vítima tem morte instantânea ou envelhece gradualmente como é o caso de John.
A Dra. Sarah (Susan Sarandon), outra vênus em beleza, pesquisa em seu laboratório as causas da degeneração física do ser humano, e escreve um livro sobre a velhice prematura, as causas e os efeitos, e como combater esta degeneração. Ela faz estudos com macacos enjaulados.
John degenerou-se completamente, buscou auxílio com a dra. Sarah, mas ela mal o entendeu. Então John foi enclausurado num caixão no sótão do apartamento de Miriam, em estado extremo e avançado de velhice... e agora a bela Miriam, a vampira, procura por uma nova vítima... e ela já tem em vista sua nova companheira...
A Dra. Sarah faz uma visita ao apartamento de Miriam com o objetivo de avaliar a degeneração física de John. A vampira diz que John viajou para longe, despistando-a. Aqui seus olhares novamente se entrecruzam como se uma percebesse vivamente a extrema beleza e jovialidade da outra, e neste impulso proibido de desejo e luxúria, Miriam e Sarah, após uma conversa amena, deixam-se entregar-se sem resistência.
A cena mais forte e mais envolvente do filme acontece entre beijos e carícias envoltas numa atmosfera de prazeres indescritíveis entre duas lindas mulheres ardentes por novas emoções, que esvoaçam-se cortinados por entre a brisa perfumada de um almiscar selvagem, e embaladas ao som da ópera Lakme de Delibes, com o trecho Flower Duet dando o toque final na mais clássica cena de lesbianismo vampírico do cinema.
Miriam drenou parte de seu sangue para o corpo de Sarah e agora a doutora está contaminada, condenada à vida eterna e como uma vampira ela só irá sobreviver se beber sangue humano. Começa então o martírio de Sarah, que não entende a transformação que ocorre em seu organismo, o qual fica debilitado, mergulhado na depressão, com dores, angústias, febres, suores frios, medo... e por fim, uma estranha sede...
Percebemos nitidamente que o vampirismo foi usado como uma metáfora para dar enlace a uma atitude sexual de forte impacto às próprias paixões e aspirações humanas. A fome de viver aperta o indivíduo, que se vê impelido a buscar e dar continuidade de vida através do sangue, o símbolo perpétuo da vida eterna.
Na sequência do filme, Sarah desentende-se com Miriam mas acaba ficando enclausurada num quarto do elegante apartamento decorado com peças de arte grega e romana, alimentando-se de sangue...
No final da fita, o horror e o sobrenatural são invocados numa sinistra cena onde espectros, caveiras, corpos em decomposição, vampiros, todas aquelas vítimas que haviam sido enclausuradas em caixões no sótão do apartamento por Miriam, levantam-se! Rebelam-se! Contra a vampira mestra que ali os condenou a ficar para sempre.
John surge novamente, mas completamente decrépto, para sua fatídica vingança. Ouvem-se gritos desesperados, ventanias esvoaçam as longas cortinas e tudo envolve-se num profundo clima de terror. Como num pesadelo infernal as criaturas querem vingar-se de Miriam... Ela reluta com todos os seres...
De repente, Miriam precipita-se do alto do sótão e cai a pique estourando todos os ossos de seu corpo. Os espectros também começam a decompor-se como que formados por cinza e poeira da morte!
Miriam, a bela "vampira vênus" como eu a havia chamado no começo desse texto, vai virando uma velha decrépta e seus louros cabelos vão esbranquecendo lentamente, desfigurando-se seu belo rosto, e transformando-se numa horrenda caveira que tem o aspecto roxo da própria morte...
Depois desta impressionante cena de terror, sobre o efeito especial da câmera, o filme vai acabando embalado na sonata para violino e piano de Franz Schubert, voltando novamente à beleza e poesia que foram o pano de fundo de todo o filme.
Agora, Sarah começará tudo outra vez... para sempre, como herdeira da maldição de Miriam, a mais bela mulher vampiro que o cinema já produziu...



FOME DE VIVER (The Hunger, Inglaterra, 1983). MGM, 100 minutos
Direção: Tony Scott
Roteiro: James Costigan, Ivan Davis
Elenco: Catherine Deneuve (Miriam Blaylock); David Bowie (John Blaylock); Susan Sarandon (Sarah Roberts); Cliff De Young (Tom Haver); Beth Ehlers (Alice Cavender); Dan Hedaya (Lieutenant Allegrezza); Rufus Collins (Charlie Humphries); Suzanne Bertish (Phyllis)


Sinopse: Quem poderia apostar na química entre duas criaturas tão diferentes quando Catherine Deneuve e David Bowie? Ela, a beleza gélida mais perfeita que o cinema conhece. Ele, um roqueiro amalucado. Por incrível que pareça, a combinação foi um sucesso, e ajudou Fome de Viver (The Hunger, EUA, 1983) a se tornar um cult do horror. Nos papéis de Miriam e John Blaylock, dois vampiros amantes muito chiques em Manhattan, eles criaram um clima de pavor sem palavras. Neste filme, a estréia de Tony Scott como diretor, os diálogos são curtos e simples, dizem muito menos do que querem dizer, e fazem a espinha gelar apenas com gestos, cores e olhares.